sexta-feira, 13 de maio de 2016

RELATO NÃO DEPRESSIVO DE UMA PESSOA DEPRESSIVA



Acho engraçado, mesmo sendo trágico, o modo como as pessoas tem facilidade de se informar sobre qualquer assunto nos dias atuais, graças às facilidades da tecnologia, mas só fazem isso quando querem. São tantos “especialistas formados na universidade do Google” em política, medicina, receitas milagrosas para emagrecimento (essas são as campeãs de diplomas!), tutoriais de maquiagem, informática, entre tantos outros assuntos que habitam as redes sociais e os mais diversos canais de comunicação. Mas é incrível como as pessoas escrevem errado e escrevem besteira. Mais incrível ainda, é a forma como conservam pré-julgamentos arcaicos e banais sobre determinados assuntos, sem ao menos se dar ao trabalho de procurar informação SÉRIAS a respeito.

Sofro de depressão há muitos anos, mas tenho aprendido a lidar com ela a cada crise. O que eu ainda não aprendi é a me acostumar com as pessoas que não entendem depressão, achando que é frescura ou coisa de gente fraca. E também com os que acham que tem cura. Uma busca rápida me trouxe a página do Dr. Drauzio Varella, um dos médicos oncologistas mais respeitados do país, em menos de dois segundos, onde encontrei a seguinte definição: “Depressão é uma doença psiquiátrica, crônica e recorrente, que produz uma alteração do humor caracterizada por uma tristeza profunda, sem fim, associada a sentimentos de dor, amargura, desencanto, desesperança, baixa autoestima e culpa, assim como a distúrbios do sono e do apetite”. Não é o mesmo que ficar triste, porque alguma coisa aconteceu diferente daquilo que esperamos, é uma DOENÇA INCAPACITANTE, que atinge cerca de 350 MILHÕES DE PESSOAS no mundo, em diversas intensidades.

Minha primeira crise, a partir de quando eu me lembro, aconteceu na escola, lá pelos 12 anos. Eu era uma menina tímida, pobre, e tinha vergonha dessa condição. Usava roupas e tênis uns dois números a mais, herdados das primas e amigas das primas. Naquela época eu não participava das festinhas e reuniões das crianças da minha idade, porque nunca tinha roupa pra ir. Pra ter uma ideia, nem shampoo pra lavar o cabelo eu tinha, minha mãe comprava o mais barato de todos e misturava com água pra render pra todo mundo, então o cabelo ficava horrível, sem contar que não podíamos nem tomar banho todos os dias, pra não pesar nas contas de água e luz. Além disso, eu tinha muita preguiça, então um dia uma colega da escola gritou, lá do fundo da sala: “Nossa! Você não escova os dentes? Daqui do fundo eu estou sentindo o bafo!” Foi o que bastou pra eu sentir uma corrente elétrica percorrer o corpo, as pernas bambas, e tudo desaparecer ao meu redor. Eu não desmaiei, mas queria ter morrido, só conseguia me perguntar onde estava o maldito buraco no chão pra poder me enfiar e sumir da vista de todos. Passei muito tempo tentando fugir da escola. Tive a ideia de inventar dores, mas a depressão tem o poder de fazer as dores surgirem de verdade, então eu sempre acordava com dor de barriga ou dor de cabeça, e usava essa desculpa pra não ter que ir. Não brincava na rua também, usava as plantas de imóveis publicadas nos jornais e ficava brincando de casinha, com os dedos.  Um dia, depois de quase duas semanas, meu pai me forçou a ir pra escola. No caminho, roubei pasta de dente num mercadinho, e passei a carregar na mochila, pra não ficar mais com bafo por usar aquela de casa com gosto de plástico. Vindo de família pobre, porém honesta, e educada fielmente de acordo com os princípios cristãos, esse foi o primeiro sinal de como a depressão é capaz de nos tirar a capacidade de raciocínio lógico, levando muitas pessoas ao suicídio por acharem que é a melhor solução para o problema.

Alguns anos mais tarde, mais uma crise: eu tinha 13 anos e visitava meus avós aos finais de semana. Meus pais me levavam, e as vezes me deixavam dormir lá, em feriados ou férias escolares, e eu não gostava da casa desses avós, sem saber explicar o motivo. Depois de muitos anos passando noites lá, eu não tinha medo, só essa sensação estranha. Até que uma noite, depois que minha avó dormiu, fiquei vendo TV na sala com meu avô. Eu sempre fui diferente das meninas da minha idade, até mesmo pelas condições financeiras, então eu tenho a certeza de que estava vestindo algo muito maior e menos expositivo do que uma blusa de alça e shortinho. De repente, ele colocou a mão na minha coxa e perguntou se eu já tinha beijado na boca. Eu respondi que não, achando que viria alguma bronca ou conselho de avô/homem mais velho da família, e não consegui nem reagir quando ele veio pra cima de mim e me beijou. Até parar para escrever esse texto, eu nunca mais havia me lembrado da sensação daquela língua e daquele gosto nojento salgado de quem ainda não havia escovado os dentes depois do jantar. Meus seios estavam começando a aparecer, e ele enfiou a mão por baixo da minha blusa, me olhou, e perguntou se eu achava que cabia na boca dele. Eu não sabia o que fazer, só sei que tive a mesma reação de quando a menina me criticou pelo bafo, perdi o controle do corpo. Ele me mandou ir para um quartinho que tinha na casa, de onde minha avó não poderia nos ver se abrisse a porta do quarto dela. Ele abaixou a alça da minha blusa e encheu a boca com aquele esboço de seio, que nem justificava o uso de sutiã ainda. Tenho uma vaga lembrança de ele ter abaixado minha calça e ficar olhando, mas não sei afirmar se ele fez mais alguma coisa. Desde então, passei a ter vergonha de ir lá. Como comportamento normal de crianças abusadas, eu achava que a culpa era minha, que eu tinha seduzido de alguma forma, e nunca contei isso a ninguém. Mas também nunca me esqueci de todas as vezes em que eu vomitava quando estava lá, e de quantas noites acordei aterrorizada por aquela lembrança. Minhas dores de cabeça nunca me abandonaram desde então.

Já passei dos 30 anos e sofro de depressão até hoje. Mas por medo das reações que já tive ao longo da vida, e por necessidade de continuar vivendo, tento não dar espaço para as crises aumentarem. Enxergo a depressão como aquele super herói do Quarteto Fantástico feito de pedra, o Coisa: de longe ela até me ajuda a enfrentar a vida, porque vivo prestando atenção para não deixa-la se aproximar, mas quanto mais perto ela chega, mais medo eu tenho de que ela me abrace e me sufoque. Eu sei que com aquela quantidade enorme de pedras, se ela abraçar vai ser para esmagar. Ela não tem sensibilidade, nem piedade.

Alterações de peso, distúrbio de sono, falta de inciativa e de vontade de fazer as coisas, agitação e sensação de que tem que fazer tudo ao mesmo tempo, sensação de cansaço e de que você não tem energia para nada, dificuldade de concentração, problemas com autoestima, alterações de libido... já tive todos esses sintomas. Já tive problemas em relacionamento por falta de libido, já passei horas na frente do computador tentando fazer algum trabalho, fiquei desempregada por dois anos, achando que não servia para nada, sem nem procurar emprego. Só não passei pela fase de tentar suicídio, embora já tenha pensado seriamente que morrer fosse o melhor remédio. Hoje eu não deixo nem os sintomas começarem, e sei que é muito difícil conseguir essa reação.

Eu trabalho, saio com amigos, me divirto sempre que possível. Lutei para me livrar dos remédios, e hoje tenho tanto medo deles quanto da depressão. Quando não quero sair da cama, é o dia em que eu saio mais cedo. Quando não quero ver pessoas, trato logo de vasculhar minha lista de amigos, procurando algum evento ou inventando alguma coisa em casa. Faço festa de boas-vindas do cachorro, chegada da primavera, apresentação do jogo de panelas que comprei para minha cozinha. Como diz Dr. Drauzio, “trancafiar-se num quarto às escuras, sem fazer nada nem falar com ninguém, está longe de ser um bom caminho para superar a crise depressiva”. E eu sei que “o Coisa” é grande demais pra entrar no meu quarto, mas forte demais pra quebrar as paredes se eu não abrir a porta. E se eu estiver sozinha, eu deixo entrar por não ter quem me ajude a me defender.


Ainda tem muita luta. A família acha que não precisa se informar sobre a doença, até porque para ela não é doença, é “frescura”. Os chefes e os clientes também não querem saber. Mas só tenho duas escolhas: OU EU CARREGO A DEPRESSÃO NAS COSTAS, OU ELA ME CARREGA PARA O CHÃO.

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